Como entender a barragem do Belo Monte? Faz três semanas que estou encontrando a complexidade do projeto aqui em Altamira e só hoje, depois de dias e dias falando com pessoas, lendo artigos e informes, tenho a convicção de ter entendido do que se trata aqui. Trata-se de política de alto nível, no país continental e complexo que é o Brasil. Tudo se passa em Brasília.
A determinação do governo Dilma para realizar a obra a qualquer custo é difícil de se entender. É claro que a consciência ambiental não é muito difundida na população brasileira – seguindo o caminho dos EUA – porém, o projeto tem fortes impactos sociais e viola os direitos humanos, o que parece estar em contradição com os valores do PT, Partido dos Trabalhadores. Mas como o PT chegou ao poder? Através da aliança com empresários. Quais foram os termos dessa aliança? Não seria a realização da obra de Belo Monte uma das condições de apoio ao PT?
É impossível negar que para muitos a situação material melhorou com a chegada ao poder do partido. Por isso, e pela história de luta dos movimentos sociais que permitiram essa ascensão ao poder, esses movimentos estão hoje divididos entre os que ainda apoiam o PT, achando que é melhor tê-los no poder que outros, e os que lutam para uma mudança mais radical e mais na linha ideológica inicial do partido, a socialista. Assim explico a divisão dos movimentos sociais em Altamira, aqueles que lutavam antes contra a barragem e hoje calam a boca quando se fala do tema, e até receberam dinheiro para suas ações comunitárias vindos da própria empresa encarregada da realização da obra.
Para mim, é a única forma de entender como uma obra como esta, denunciada pelos científicos, pelos indígenas e pela movimentação internacional, pode estar hoje iniciada e de maneira ilegal.
É muito importante então, e mais que nunca, ter uma visão política bem clara da situação. Pensei por muito tempo que a razão de realizar a hidrelétrica estava relacionada à mitologia moderna do avanço tecnológico e da exploração infinita de recursos. Se esta dimensão é aquela que percebe a maioria da população, manipulada com o conceito do progresso, a razão fundamental seria mais política. Mas por que esse interesse e essa pressão sobre o PT por parte de seus aliados? Parece claro: os recursos da Amazônia. A Amazônia é ainda pouca explorada e muitos minérios dormem poucos metros abaixo da floresta e dos rios. O lucro potencial é imenso e Belo Monte vai fornecer energia e força de trabalho para esta futura exploração.
Para manter-se no poder nas próximas eleições em 2015 (ano programado para o início da produção de energia em Belo Monte!), o governo QUER Belo Monte. Por isso a pressa e o desrespeito aos procedimentos legais, aliados a um contexto local de alta corrupção e conflitos de terras. Por isso a necessidade de aprender sobre a política brasileira, a história do país e o que está acontecendo hoje: para lutar juntos a fim de que não se realizem obras como Belo Monte, mas também para manter o progresso do país. Não o progresso da mitologia da modernidade; mas sim o progresso da democracia, da luta pelo poder do povo, que ainda está em total construção tanto aqui quanto no mundo inteiro.
Os lucros das construtoras de Belo Monte são irrelevantes se comparados aos lucros que essas mesmas empresas já obtêm com o crescimento econômico recente verificado no Brasil (construção de estradas, portos, obras para a Copa do Mundo e Olimpíadas, projetos de habitação popular, projetos em África, etc)
Belo Monte, analisada isoladamente, não tem, portanto, esse peso que você dá, tanto para as construtoras, quanto para o governo.
O governo QUER Belo Monte não por que a empresa X ou Y quer construir Belo Monte, mas por que o modelo econômico de desenvolvimento que o governo, o povo que o elegeu e as construtoras querem implica na previsão de aumento de demanda energética, ou seja, com a ascensão das classes mais baixas, maior consumo de energia, com o aumento de produção industrial, maior consumo de energia.
E como o governo estabelece isto?
Através do Plano Decenal de Expansão de Energia [1], um estudo aprofundado de simulações econômicas e de engenharia que estabelecessem quantos Mega Watts são necessários a mais para que o Brasil atinja determinada configuração desejada.
Outro erro que você aponta é que Belo Monte servirá apenas para fornecer energia para empreendimentos extrativos, argumento esse que a própria oposição ambientalista aqui no Brasil já reconheceu ser falso: Belo Monte, se terminada, será integrada a uma rede de distribuição de energia que alcança todo o território brasileiro, e portanto, a energia gerada por ela não será usada apenas na Amazônia, por empreendimentos extrativistas, mas em todo o país. [2]
E quem consome energia no país?
O próprio Plano Decenal diz que a proporção de consumidores domésticos é mais ou menos a mesma dos consumidores industriais (que abrangem não só a indústria extrativa, mas outros tipos de indústria)[1]
Se queremos criticar Belo Monte, não pode ser através do recurso a mitos (tanto na acusação quanto na defesa), mas a críticas mais concretas à raiz do « problema »: o projeto de país que o governo e o povo que o elegeu querem.
E, a menos que seja feita uma revolução no Brasil, o único caminho é na discussão do processo institucional democrático do qual tanto o governo eleito quanto o Plano Decenal de Expansão de Energia fazem parte.
Se queremos criticar Belo Monte, teremos que desmontar as premissas e as conclusões do Plano Decenal de Energia.
Se há problemas em Belo Monte, eles têm que ser encontrados aí, não em alusões poéticas muito vagas a um suposto « projeto de modernidade » condenável – muito bonitas, mas frágeis perante argumentos como os que apresentei aqui e perante a aceitação popular que legitima – até prova em contrário – essa opção.
Referências:
[1] « Qual seria a destinação da energia de Belo Monte?
Do total de energia produzido pela usina, nos próximos 35 anos, por determinação do governo, 80% abasteceriam a rede nacional e seriam vendidos pelas distribuidoras de energia no mercado cativo (consumidores em geral). Os 20% restantes pertenceriam ao Consórcio Norte Energia para serem consumidos por seus sócios, ou destinados ao mercado livre, composta majoritariamente por empresas eletrointensivas. » ( http://www.xinguvivo.org.br/2010/10/14/perguntas-frequentes/)
[2] Plano Decenal de Expanção de Energia
Análise do Plano Decenal de Expansão de Energia
Gustavo, como você aponta las construtoras de Belo Monte não são todas (mas mira um pouco o caso da Vale!) as que vão gerar o lucro máximo com o projeto. Porém, a importância da barragem como símbolo na região é grande, da mesma forma que a construção da transamazônica foi marcada com 3 « árvores » de concreto. Não é só Belo Monte, é todo o futuro da região Norte do pais que entra nesta lógica, mas Belo Monte é o símbolo maior disso, particularmente no caso indígena. « Amazônia é nossa »!
Os diferentes argumentos que você aponta sobre o cenário energético são certos, cenário que faz parte do modelo de desenvolvimento eligido pelo governo. Porém isso justificaria a negação dos direitos humanos e das legislações? As críticas ao Belo Monte não são só uma questão de planejamento energético, também são do ordem do irrespeito as vidas dos ribeirinhos, indígenas, pescadores,… Nada foi feito legalmente, por exemplo tive que demitir o IBAMA dois vezes para poder encaminhar o projeto. Seria isso práticas de uma democracia?
O modelo de desenvolvimento é a base a criticar sim, e neste caso podemos sem problema falar de mitos. O mito que a energia da barragem é uma energia limpa. O mito do crescimento econômico. Só um análise sistêmico completo do Belo Monte podária mostrar se vai gerar más benefícios que danos. Na realidade não é feito o balanço energético integral, tomando em conta o custo total da construção (produção do cemento, do aço, transporte, construção das máquinas e das turbinas e auxiliares, construção da obra civil em si) num cenário que visa a destruir modos de vida sustentáveis (indígenas, ribeirinhos, pescadores) para ampliar um modo de vida urbano alto consumidor em energia e infraestruturas. A causa maior do aumento do consumo de energia é esta: a promoção da vida urbana e de uma agricultura insustentável.
Por isso o Belo Monte não é uma necessidade energética, más bem de política econômica global, com a exploração dos recursos da Amazônia.
O Estudo de Impacto Ambiental foi feito pelas mesmas empresas que constroem a barragem. Um painel de científicos independente chegou a conclusão que não é viável. Mas todo esta feito como se o Belo Monte é feito consumado, isso é admissível?
Aí é uma questão polêmica: você quer retirar da conta do balanço as demandas energéticas da população urbana, para contabilizar apenas as demandas da população local.
Isso significa voltar as costas para uma realidade concreta: aproximadamente 75% da população brasileira é urbana e concentrada na sua maior parte no litoral do país. 80% da energia de Belo Monte, conforme demonstrei no comentário anterior, irá atender a esta população.
Pelo seu conceito de integralidade, essa demanda – dos 75% da população brasileira – é eliminada do balanço a favor dos 0,0000…% de população local.
Isso significa então que as minorias (indígenas, ribeirinhos, etc) serão simplesmente desprezados?
Acho que não, e é por isso que existem políticas compensatórias.
Veja o exemplo da construção da usina hidrelétrica de Lajeado
: a população local foi afetada, o ambiente local foi afetado, mas o mundo não acabou, não houve uma hecatombe, e as pessoas se adaptaram.
As políticas compensatórias não são justas?
Serei o primeiro a engrossar qualquer movimento em defesa de compensações justas.
Mas uma coisa é desconsiderar as demandas energéticas de 75% da população em favor dos 0,000…%, outra é lutar pela justa compensação desses 0,0000…% em virtude do impacto causado pelo atendimento às demandas dos 75%.
A minha crítica à mitificação do discurso anti-Belo Monte é exatamente por aí: o modelo de desenvolvimento atual – o que você critica, e adianto-lhe, eu também – não é um mito, mas uma realidade. Ele dá carros, geladeiras, televisões de 42″ às pessoas, a essas pessoas que compõem os 75% da população urbana. Ela pode ser mito sim, para grande parte dos 15% de população rural que ainda não têm acesso a esses bens oferecidos por esse modelo de desenvolvimento, e que não vêem a hora de, se for preciso, ir para a cidade arranjar emprego e conseguir comprar carro, geladeira, televisão.
(Eu não tenho carro e odeio televisão; a geladeira é velha, mas acho que vou ter que trocar simplesmente porque consome mais energia do que os novos modelos)
Veja bem, as minhas críticas aqui não são tanto à defesa de Belo Monte, mas à forma como ela é feita, através do recurso ao mito, e desconsiderando essa realidade a que me referi acima: dessa forma, esse discurso só « cola » numa minoria burguesa, educada(e urbana), entediada, talvez desgostosa por não ter alternativas de inserção profissional que não seja no mundo capitalista competitivo burguês. O povão – urbano e rural – quer mais é ser burguês e quem sabe um dia, sentindo-se entediado, lutar por Belo Monte. (Nesse sentido, embora não tenha relação direta com o assunto aqui, vale a pena ler o artigo » O MST e a Agroecologia« , que mostra como esse movimento acabou abandonando a proposta socialista em favor de um modelo centrado em unidades individuais – ou seja, aburgeusou-se)
Como convencer essa massa?
Recorrendo a mitos que dizem, no fundo, que eles são maus, idiotas, por quererem carros, televisões, etc?
Acho que nenhum discurso político consegue apoio popular denegrindo aqueles que quer convencer (« Olha, você é um idiota, venha comigo defender a minha causa, e você não será mais um idiota »)
De novo, insisto: o que defendo aqui não é Belo Monte, mas um discurso anti-Belo Monte que se parta da realidade atual e concreta – a população é urbana (ela quer voltar ao campo?); a população quer carros (ela quer prescindir deles?); a população é burguesa (ela está preparada para não o ser?); para atender a essa população, hoje, é preciso aumentar em x% a geração de energia elétrica…
Como acabar com os grandes centros urbanos?
Como prescindir do consumismo?
Como não ser burguês?
Vá convencer a grande maioria da população brasileira que nunca teve nada disso que eles estão errados (ou seja, que o modelo de desenvolvimento atual é ruim)
Gustavo, quando me refero ao balanço energetico, estou falando da energia que vai realmente ser producida durante a vida da barragem, depois da dedução do custo ernergético da construção da obra. Não fiz o calculo mas não é uma parte anecdótica, quanto a mudança de modo de vida das pessoas atingidas é anecdótico.
Estou contra Belo Monte não só porque está seguindo um modelo que acho errado mas porque foi la e vi a situação local e a maneira de atuar da empresa Norte Energia e do governo. Porque o Belo Monte como caso particular esta feito de forma errada. O preocupante é que os estudos de impacto ambiental são feitos muito rapidamente sem consulta popular e pelas empresas contratadas para realizar a obra, quando aquele que deveria fiscalizar é aquele que manda (o governo). Isso é realidade também.
Uma realidade construida a partir de um mito que, é seguro, vai demorar até ser deixado do lado, por isso a importancia da informação crítica e da educação popular.
Outra realidade: o desmatamento. É provado a função reguladora da Amazônia no clima da America inteira. Qual é o custo energético e econômico deste servicio? Hoje, as zonas mais preservadas são as areas indígenas. Acabando com esta minoria (a manera de realizar projetos hidrelétricos e mineros vai para isso, com legislações mais flexiveis e até elas mesmas não respeitadas) se pierde um aliado forte nesta luta para preservar a floresta, alem de perder uma cultura que tem por centro da sua cosmologia a floresta.
O problema é enorme, como você aponta. Há uma necesidade de revolução, sim, na maneira de pensar. Precisamos de uma revolução profunda, começando para utilisar uma abordagem sistêmica, nesse sentido a agroecología que você aponta deve ser a regla e não um mercado para ricos e deixando transgenicos pelos pobres. En nenhum caso acho que uma pessoa é idiota. Mas acho que um político de verdade tem que recordar isso:
« A arte da política não é de fazer o que é posível fazer, é a arte de tornar posível o que precisa ser feito », Augusto Boal
Por isso, ainda acho que Belo Monte é um erro. O problema não é de aumentar a produção, é de repartir as riquezas de outra forma e produzir de forma responsável. É um desafio, uma luta, que ninguem pode deixar de lado. Por isso acho que o esforço é commum, é mundial. A empresa (o uma delas) que orientou o governo brasileiro no plano decenal é belga. Acho que todos os decidores devem ser cobrados para suas ações, e não deixarei de cobrar esta empresa.
Agora, acho que há uma questão de ego também, ego muito forte que encontrei na sociedade brasileira, que alimenta o modelo competitivo quando a solução passa pela cooperação a todo nivel…
Você fala que com a construção da usina de Lajeado, o mundo não acabou. E sem Belo Monte, o mundo vai acabar?
Se você me permite, gostaria de acrescentar o relato de um caso que aconteceu comigo, aparentemente em nada relacionado ao tema, mas que ilustra bem o que quero dizer quando me refiro às ansiedades da massa.
Fui a uma clínica particular para doar sangue e lá fui atendido por uma técnica em enfermagem.
Enquanto doava sangue ela ficou ao meu lado e, estimulado por uma estranha vontade de conversar com ela, perguntei-lha há quanto tempo trabalhava ali.
Ela disse-me que há 10 anos.
E fez questão de acrescentar, com orgulho e altivez, olhando-me nos olhos: « Eu fazia a limpeza, mas estudei e agora estou aqui. »
E continuou: « Estou estudando, e quero formar-me (curso superior) em enfermagem, na especialidade Enfermagem do Trabalho. »
Perguntei-lhe o que era isso.
Disse-me que era enfermagem voltada para empresas.
Perguntei-lhe se queria trabalhar em grandes empresas.
Disse-me que sim, que era um sonho.
A meta dela, a médio prazo, era trabalhar na Petrobrás (a megaempresa petrolífera brasileira)
« Mas aí você vai trabalhar em plataformas de petróleo, em alto mar? É isso mesmo? », perguntei-lhe.
« Sim, os meus filhos vão reclamar, mas eles sabem se virar sozinhos »
Quando terminou a doação, mais tarde, ela não me saía da cabeça, e pude entender então o que tinha me atraído nela: a sua singular atitude, uma mistura extremamente bem equilibrada de altivez, dignidade e orgulho, a mesma atitude que eu encontrara, por exemplo, no povo cubano, quando lá estive há tempos atrás.
É esse o povo brasileiro (ou pelo menos, uma enorme parcela dele).
Senti-me feliz nesse dia por tê-la conhecido, e senti-me feliz por viver no mesmo país que ela, mesmo que ela não tenha uma formação ideológica consistente (isso não tive tempo de verificar).
Não sou um adepto fervoroso do PT (e se você vir o meu blog, verá que faço mesmo muitas críticas ao governo), mas não posso deixar de verificar que essa altivez da moça é uma novidade recente, e se queremos (e devemos) radicalizar as mudanças, teremos que levá-la em conta, a ela e aos seus anseios.